Alexander Martin Wash
Escrever uma (auto)biografia
já é uma árdua tarefa por si só. Viver é biográfico. Por mais público e notório
que se seja, a distinção entre o público e o privado é ou será sempre a
distância elementar entre a cozinha da casa e sua latrina.
Os cômodos de uma casa são
praticamente a realização da vida de uma pessoa. E é nela, esse pequeno feudo
chamado lar, em que escrevemos com sangue,
suor e lágrimas os momentos significativos e significantes de nossa
estúpida e singular existência.
Talvez por isto, essa
distância tão hegemônica à tantos mundos, em que quartos e salas, áreas
distintas entre o lazer e o serviço, sejam tão pouco comensais. Um olhar sobre
si mesmo recai muito mais sobre nossas mentiras do que sobre nossas imprudentes
verdades.
Ao certo e para tanto:
verdades não nos interessam. Por si mesmas já desencantam. Desmistificam.
Desmitificam. E isto é trágico.
Ser sincero é ser sozinho:
egoísta demais para conviver com a fragilidade da existência e sua
incompletude.
Caso não queira ser
contrariado, por favor: não nasça! Desejas ser perfeito? Morra!! Somente a
morte nos torna, retorna, reflete em si, o que por ventura ou desventura é
perfeito.
Há quem diga da perfeição
divina. Nem nela, aos 120 anos de idade, um homem de bom senso crê.
Não por sua latente
companhia. Aliás, de ambos: Eros e Tanatos. Juventude e decrepitude sempre
andam juntas. É como saber e ignorância: como necessitamos de justificativas
para nos dizermos sãos. Como precisamos tanto da palavra igualdade para nos
afirmarmos únicos e tão únicos, tão donos de nós próprios: livres. Encarcerados
em uma bolha de ares não respiráveis, mas livres!
E nada como afirmar: o amor é
azul! A terra é azul. O mar é azul. O ouro é azul. A morte azul. A chama da
vida: o fogo é azul!!
É... A lua, no entanto, é cor
de burro quando foge! Ou algo meio insosso,
insípido. A lua é sem sal. E tudo sem sal é, na modernidade de nossos pré-tumulares,
bom. É preciso iodo. Não etos, atos. Sei lá mais... Em um mundo formatado em
óides, úricos e ídricos, apenas os hídricos e hesitantes são totalmente
descartáveis para o bem maior da integridade econômica (reciclavel) glocal.
O êxito é uma palavra
sagrada. Secreta. Guardiã da eternidade. Mãe da sobriedade. Talvez natimorta.
Já que o que se revela no hoje o é em sua totalidade. E há que fale sobre
sustentabilidade. Vá entender lá o que é isso!? Na antiguidade, e nunca sequer
saímos de lá (se é que lá estivemos ou chegamos!?), era a legalidade da
escravidão! O que não está longe, mas bem presente! Enfim, nada como ser
troglodita.
Outro dia estava lá, debruçado
sobre os escombros de si mesmo e solicitando piedades aos transeuntes, o meu
precursor: algo de resto entre o preto, o branco e o qualquer coisa chamado de
índio. E rio-me quando afirmam-nos cinza. Acaso trate-se da cor: ainda há como
escolher entre escuro ou claro; mas tratando-se de ou da existência,
resistência, força, qualidade, propriedade, serve ao menos para salgar a caça
que sobrar. Acaso sobre.
Falava-se outro dia sobre a
fome. Não a conheço. O que conheço possui outro nome. Chama-se estupidez. E
nada é tão farta no mundo quanto a estupidez. Estupidez e ignorância são sinônimos
da igualdade que se busca e da sustentabilidade que se conquista no “por ora”
das horas extras não pagas. E cobrá-las acaba por ser direito, porém,
incoerente. Afinal, a previdência é a previdência. E para ela hora extra não
existe. Não conta como tempo de serviço. Ou se conta, onde estão os dez, quinze
anos nelas embutidos e consagrados à vã gloria do proletário. Assiduidade. Nada
como ser assíduo. Nada como a mais profunda competência. Relevância.
Excelência. É bom também! É ser sustentável... No mínimo: auto-sustentável,
ainda que imóvel.
Imóvel. Creio bem mais nesta
palavra do que na liberdade ou esperança. Um dia foi-se criança. E hoje é-se
velho, arcaico, deprimente, descartável – principalmente se não possuir renda ou
recursos. E tem-se apenas vinte anos... O que dizer de quem chegou – sobrevivente
– aos sessenta, setenta, oitenta, cem...
E sem é uma palavra
derradeira. Porém cada vez mais comum. Assim como imóvel. É... O latifúndio venceu:
a cova rasa é um direito legal, porém, distante, bem distante do lugar comum. É
um imóvel. Como cada vez mais nos tornamos...
O pedágio está nas ruas, nas
vielas, nos becos e avenidas, está nas praças, nos concretos e congressos, nas
concretudes constituídas no pânico e no medo nosso de cada dia.
É o patrimônio que somos. O
legado que deixamos. A biografia. A historiografia real e ampla de nossas
palavras, atos e omissões. E tudo é trabalho. Tudo se resume ao servir, ao
prestar, ao eficiente e eficaz. Aos meios e recursos recebidos. Às habilidades
e competências adquiridas. Ao uso. Usufruto, talvez!? Usucapião, sempre.
Memórias são assim:
fragmentos de nossas conveniências.
E como somos tão determinados
por nossas inconveniências. Como somos julgados segundo nossas misérias. Como
nos espelhamos tanto em dependências.
O mundo não é um mundo de
luzes. Ele é constituído e consagrado através da escuridão. O obscuro e o oblíquo
são as forças motrizes da existência. Precisamos
muito mais dos vícios do que das virtudes... Pessoas virtuosas não nos são
úteis.
E no fim desta, assim como as
demais, pouco nos importa ser Dante ou Cervantes: de nada ou pouco a prata
abasta. Tanto faz perguntar sobre o caminho: “as aves do passado não repousam no mesmo ninho do agora”.
Ter um Deus apenas, não é
algo de bom senso.
Falar de amor não é bom. Amar
faz bem, só isso. Saber amar é que é difícil: tanto de aprender, quanto mais,
ensinar...
Perdão?! Não conheço! Mas esquecer
vale a pena.
Vou viajar. É comum ao tempo
fazer-se espaço. Na bagagem quase nada levo. O suficiente para uma semana,
ainda que a jornada leve décadas. Esteja onde estiver, lá estarei completamente
nu. E isto me é bom e sagaz: ser sempre incompleto. Satisfatoriamente,
incompleto...
