quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Tchau, querida! Ford do Brasil 1919 – 2021

 

Thiago Augusto Arcanjo Madeira Leão

 

Ao acordar na segunda-feira da segunda semana de 2021, 11 de janeiro, o Brasil se redescobre em primórdios do século passado. Tanto quanto aos disparates de sua ignorância – algo que assustadoramente não preserva classe social, etnia ou gênero, e muito menos espiritualidade; tanto quanto aos afrontamentos e enfrentamentos necessários para sua própria subsistência enquanto soberania nacional. Enfim o golpe de 2016 começa a surtir os seus efeitos nefastos.

 

O “tchau, querida!”, mote sarcástico-amoroso que selou a era Lula/Dilma, o dito Lulapetismo, e chafurdou a história de uma social-democracia possível em um mar de lodo e lama sem par, e elevou ao poder o que há de mais pernicioso nas esferas de governança, agora nos serve de mortalha.

 

Sir George Canning, Primeiro Ministro britânico (1827) declarou um dos mais conscientes conceitos de Estado: sem tesouro, sem lei! Ou pagam impostos, ou inexistimos! Ao que Margareth Thatcher, o cão chupando manga do conservadorismo britânico asseveraria em 1979: o que sustenta o Estado é o imposto, logo, governo algum pode pensar em favorecer minorias em detrimento de maiorias; o trabalho depende da dignidade da vida que ofertamos através de nosso assalariamento; e a empregabilidade depende de nossa capacidade de produção e apropriação de conhecimento: educação, ciência e tecnologia. A garantia de renda é fruto da estabilidade e da continuidade de políticas sérias que promovam o desenvolvimento econômico com seguridade social de amplo espectro.

 

Em 1988, ao promulgarmos a nossa Constituição Nacional, havíamos alcançado - diga-se: a duras penas! - algo até então não visto por aqui: uma Carta Magna digna de universalidade, com consciência de garantias de direitos, corresponsabilidade de deveres e independência entre os poderes.

 

Quiséramos que a classe política e demais atores da governança tivessem-na enquanto normas a serem protegidas e, assim como nas nações desenvolvidas, a promovessem ao status de evolução contínua na defesa dos interesses pátrios. Mas não. O que se viu durante os trinta anos que se seguiram foi seu sistemático desmonte.

 

Não que as leis e seus processos sejam estáticos. Não. A lei e os processos caminham ao lado do consuetudinário, provendo as relações sociais, políticas e econômicas de basilares para o exercício da vida em comum de uma sociedade minimamente constituída.

 

Quando determinadas regras básicas e de bom juízo são ignoradas, na razão de Estado, há a constituição de extraclasses e categorias privilegiadas, que uma vez protegidas pelo arcabouço jurídico e institucional, jamais abrirão mão de seus privilégios.

 

O resumo da ópera, no caso brasileiro, é algo surreal. O Brasil é uma monstruosidade de proporções escatológicas. É bizarro!

 

O custeio do Congresso Nacional é da ordem de 15 bilhões de reais anuais; a máquina pública em si, Executivo, Legislativo e Judiciário, nos custa 5,3 trilhões de reais por ano, aproximadamente.

 

Mas a eficiência e a eficácia desses na defesa de seu povo é extremamente duvidosa. E tal sentimento é impregnado por todos os entes da federação, sendo a corrupção uma forma institucionalizada de governo. Da municipalidade ao estadual, deste ao governo federal não há sequer uma Câmara Municipal ou Assembleia Legislativa que não esteja compromissada com alguma ilicitude, com projetos escusos e de defesa de interesses pessoais ou corporativos, sejam estes regionais ou nacionais.

 

A propina é a regra, não é uma exceção. O toma lá dá cá entre políticos e membros do judiciário; a conivência das receitas federal, estadual e municipal com a ilicitude da sonegação e evasão de divisas de corporações nacionais e transnacionais, bem como de eminentes pessoas físicas abastadas, formatam o modo de gestão nacional na qual permutam-se o imposto, as taxas, as multas, as contribuições sociais em isenções, perdões e anistias, tornando a inadimplência garantida de impunidade.

 

Tais fatos, que não carecem de grandes alaridos, posto serem desvelados sem pudor algum, e que fazem parte de uma cultura estrutural desde a época colonial, mas que atravessou o império e se perpetuou nas dinastias republicanas do século XX e sua oligarquia escravocrata rural, estas que jamais permitiram o desenvolvimento técnico e industrial nacional por estarem vinculados aos interesses de outras nações (plantations, extrativismo, mineração e commodities), são, de longe, os fundadores e perpétuos zeladores e reprodutores da desigualdade social e econômica nacional.

 

Os problemas centrais da urbanidade: infraestrutura e saneamento básico; mobilidade, acessibilidade e transporte público, são as fontes infinitas de recursos para o enriquecimento ilícito. Saúde, Educação e Habitação tornaram-se um anteprojeto de segregação e seletividade: uma higienização social estruturada e de grande envergadura e cada vez mais autossustentável.

 

O Brasil é o único país no mundo em que as perdas de garantias de direitos universais é comemorada em via pública por aqueles que sequer tiveram ou tem acesso ao jardim da infância.

 

Mas pode ser pior!

 

O Brasil é o único país (supostamente) democrático de fato e de direito no qual “patriotas” se prestam a ir às ruas para exigirem um regime de exceção, sem sequer saberem escrever exceção, e que tal regime não só emagrece, mas também mata.

 

O Brasil é o país aonde 99% da população se declara cristã e é considerado por muitos a pátria do evangelho, mas elege para presidente um entusiasta da tortura, de caráter tortuoso e de ligações extremamente suspeitas com indivíduos mais suspeitos ainda. Um contumaz homem de famílicias disposto a tudo na defesa de seus entes amados, familiares e amigos. Incrivelmente, sobrevive em plena campanha desde sempre, não tendo tempo para governar com decência e probidade, denodo e senso de dever que a liturgia do cargo lhe confere.

 

Enquanto Executivo, 200 mil mortos por uma pandemia que poderia ser minimizada com bom senso; boas práticas de civilidade e higiene; bons exemplos; centralização de operações e custeio; conciliação política; seriedade e equidade econômica; e, principalmente, empatia para com seus enfermos e enlutados, denota a sua eficiência enquanto executor. Não bastassem tais ignorâncias, ou seja, nada ter de fato realizado no combate efetivo à pandemia, vivencia-se mais um drama: mais do que a politização da pandemia, a reedição de campanhas antivacinas e teorias conspiratórias de outrora, catapultadas no agora via redes sociais e seu universo maravilhoso de não verdades: as fakes-news! Realmente: o Brasil não é para amadores! Ele possui 30 e poucos anos de muita experiência em negar até a própria existência.

 

É neste caótico cenário em que a Ford do Brasil encerra as suas atividades de produção no país. Mas não. Não nos deixemos enganar por aparentes justificativas ou desculpas. O quadro atual apenas oportunizou uma saída estratégica há muito estudada e que se fez conveniente no agora. As incertezas (?) acerca do futuro social, político e econômico brasileiro são fatores relevantes, mas não determinantes.

 

Quando afirma-se que quando alguém propõe perdas de garantias de direitos em nome de empregabilidade, assalariamento e renda, nega ambos, é este o contexto resultante: nem um, nem outro. Pois o que se oculta ou nega-se é o senso de realidade da responsabilidade inerente ao desenvolvimento social, ofertando demasiadas benesses aos supostos entes produtivos, estes cujos acentuados avanços das novas tecnologias de produção – infomecatrônica, mecanização e mobilidade autônomas, robótica, inteligência artificial, e outros – requerem cada vez mais capacitação profissional especializada, porém oferecendo cada vez menos postos de trabalho, e, óbvio, dada a demografia e as questões geopolíticas, achatamento salarial global devido ao poder de barganha do capital industrial e financeiro.

 

Neste ponto, é mister entender que não apenas a Ford do Brasil está indo embora, mas outras empresas seguirão no curto e médio prazo o mesmo caminho.

 

Mais do que uma reengenharia universal das empresas para se adequarem ao cenário futuro de plena automação e tecnologias de informação e controle de alta performance, há a questão central do capitalismo: sem lucratividade, sem negócio.

 

Como o Brasil não consegue entender que não há como manter tamanha concentração de renda, onde 0,1% da população retêm 80% da renda, e que o salário mínimo não encontra ganho real há décadas, pois nem mesmo os esforços petistas de redução da desigualdade surtiram efeitos permanentes ou continuados, não há consolidação do mercado interno.

 

Some-se a questão tributária e fiscal que isenta quem não devia, e impele ao povo uma carga absurda de taxas e tributos, e não retribui ao contribuinte o mínimo de qualidade de vida e seguridade social adequada, mas que através de – continuado e permanente – assalto ao erário público através das Desvinculações de Receitas da União que a nada mais prestam senão ao enriquecimento ilícito de seus gestores, há o pleno entendimento que não são reformas trabalhistas e previdenciárias a retirarem garantias fundamentais do trabalhador brasileiro que resolverá a estagnação econômica e o desenvolvimento nacional como um todo.

 

Com o processo de desindustrialização – este também, continuado e permanente -, bem como a canibalização de seus parques industriais, a dependência externa de máquinas, peças e implementos de todas as ordens, seguindo das desregulamentações e isenções sobre diversos produtos e insumos importados, o futuro brasileiro é trágico.

 

Sem educação, ciência, tecnologia e inovação tecnológica, restar-nos-á apenas a terra arrasada. Nem pasto. Nem lavoura. Nada.

 

Sem justiça social teremos apenas os corpos de centenas de milhares homens, mulheres, crianças e, principalmente, idosos enterrados em valas comuns. Fruto do descaso centenário. Bem como da escravidão que nos permeia. Concretude absoluta dos preconceitos e das intolerâncias que tanto nos distinguem em homens de bem ou qualquer coisa: afinal, você sabe com quem está falando?

 

Mas pode ser pior!

 

É triste. É muito triste ver a idiotização de um povo como um projeto de governo. É muito, muito, muito triste ver pessoas louvando a Deus e enriquecendo falsos líderes religiosos que vendem feijões mágicos contra a Covid. Tenho a certeza absoluta de que as suas sagradas escrituras são outras: a da sua casa, a do seu apartamento, a da sua fazenda...

 

Mas, fazer o quê? Há quem goste de mitos. Eles têm a graça, o fascínio de nos tornar inculpes sobre nossas misérias. São o espelho de nossa alma. O reflexo de nosso caráter. O escopo de nossa espiritualidade.

 

Nada é tão trágico, tão desesperador: o sonho do oprimido é tornar-se o opressor!


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