quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O rei e o rato


Jodhi Segall


Naqueles dias, saiu Sua Majestade em comitiva primaveril por todo reino.

Fora, é óbvio, cobrar tributos as seus suseranos, aplicar a lei aos seus vassalos e usufruir dos frugais de suas vastas propriedades, quintas e solares.

Nobres Cavalheiros – uma doce e romanesca turba de bêbedos, amantes das coisas fugidias, caçadores de riquezas e imprudentes por natureza – iam à frente, desvirginando doidivanas e incautas matas de moçoilas aldeotas, vez ou outra (chanfurnando-se em preguiças de alheios colos) em justas de “honras” e futilidades elevam o nome de não nobre arte.

Ao meio, alegrando e encantando as vilas, ia a “GRAND TROUP” pululante de atores, músicos, plásticos, enfim, artistas de palco e de tela que levavam a cultura e a felicidade do seu soberano (que mais feliz ainda) ia aos seus fiéis súditos “comer suas rendas em espécie”.

Lavadeiras, taverneiros e mercadores de mel, trigo, especiarias e tecidos engrossavam a corte real.

Ah! Prostitutas e bufões, é claro, bem como o clero (contabilistas do rei e judeus banqueiros cambistas das liberdades) não poderiam faltar...

- Viva o Rei! Deus salve a Rainha!

- Saudações de júbilo por todas as partes.

Assim ia-se o Rei a exercer sua divinal justiça e a encher suas julhas...

Foi quando, numa destas tardes quaisquer em que distraído para a morfe, João pé-de-chinelo estava, no pomar do solar do soberano, a degustar ao lel-desfrute saborosas vinhas, que se deu o espantoso e legendário encontro do Rei com o dito rato:

- “Não há terras sem senhor” – alardeou ao avistá-lo o arauto.

- Pega! Pega! – incita o real séqüito.

João pé-de-chinelo não se abalou. Vinhando estava, vinhando continuou.

Diante de tamanha ousadia a guarda real quisera, ali mesmo, supliciá-lo, mas era um grande Rei: cínico, realista, cruel, dogo e benéfico.

Duro; intempestivo; ardente e imoderado com as mulheres; corajoso; poeta e trovador, “amigo” de todos os Castelões...

Um perfeito cavalheiro, destes que adoram uma boa refrega e que não perderia uma oportunidade ímpar (como tal) para demonstrar sua opulenta e majestosa justiça.

- Tragam-no! Eis que desejo conhecer tal beligerante! – ordenou.

João, trazido aos ferros, apressou-se aos pés de seu senhor: - João pé-de-chinelo, vosso mais humilíssimo servo, Majestade! Eis-me aqui, às vossas mercês em corpo, alma e espírito, meu Rei e senhor!

- Não sabeis serem estas as parreiras das vinhas das quintas Del Rei? – inquiriu o Chanceler.

- Não só estas, senhor, bem como todas as terras do reino! – respondeu-lhe João, firme e cabisbaixo e penitente diante Del rei.

- Ora, mas que insolência! – ira-se indignado o magistrado.

- Oh! Mas que chiste! – encanta-se El Rei, que prossegue: - O que fazeis? Qual vosso ofício? (E dirigindo-se aos convivas) Além, é claro, de furtar as uvas... (Risos em geral) Quereis, por desventura, acender-me a cólera sobre vós?

- Não meu sol! Luz esplendorosa a iluminar as sendas mais distantes do universo e talhar com nobre piedade, justiça e valor, a história humana. Não, meu Rei! Longe deste humilde poeta e trovador despertar-vos a ira divinal ou infernal cólera, da qual sabemos todos, que sois portador... (E com tom meloso, cabisbaixo e ao som do melodioso aláude, gorjeou:)


“Venho deveras de longe, muito longe, em busca de saber e esclarecimento,

vim por delongas e minuosas estradas,sem prazer ou bom sustento;

Tal que, eis-me aqui, o mais mendicante monge, por entre vossas pradas, a Cristo olhar,

Que ao horizonte vossas tintas uvas de beleza sem par, ao altivo dorso do encantado monte,

Jaz faminto, foram minha gula despertar.

Oh! Meu Rei! Meu Magnífico! Piedade a vós suplico!

Réu confesso: devolvê-las já não posso. Mas feliz e satisfeito me explico e muito sinto.

E deito tardo, em fardo humilde, meu pescoço ao julgamento vosso!”

 
- Ohhhhhhhh! (Exclama a surpreendida plêiade) – Piedade! Clemência! Misericórdia!

Num rompante, o Rei ergue-se. Puxa a espada de seu campeão e firme e decidido a sobrepõe ao ombro do infeliz e profere a redentora sentença: - Eis que estais perdoado por vossa insolência!

Vivas, hurras, clarins, fanfarras...

Mas discretamente, em seguida, pondo-se ao largo, num hábil, destro e rápido e único movimento, degola-o sem o mínimo constrangimento, e, conclui: - Mas não pela pobreza dos vossos versos! El Rei!

- Um grande Rei! – todo mundo

- “Lic transit gloria mundi...” – o frade: “assim passa a glória do mundo” (ato de humildade pontifícia).

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