quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Amor que não ama (De ócios, vícios e desesperas)

A religião, a sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três lutas são ao mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o templo; precisa criar, daí a cidade; precisa viver, daí a charrua e o navio. Mas há três guerras nestas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da vida. O homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma de superstição, sob a forma preconceito e sob a forma elemento. Tríplice ananke[1] dos dogmas, das leis, das coisas. (...)A estas três fatalidades que envolvem o homem junta-se a fatalidade interior, o ananke supremo, o coração humano.
 
Hauteville-House, março de 1866.
Vitor Hugo,
in Os Trabalhadores do Mar, p 1,
prólogo. [1] do grego: destino, fatalidade, morte
 
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Fragmentos de Um Grande Amor Dilacerado/
Amor que não ama.
(De ócios, vícios e desesperas)
 
Jodhi Segall
agosto 2009
 

Prólogo

A apuração de nossas estatísticas.
Real realeza que dista da plebe rude.
Pó comensal na mesa dos moedores.
Pilão sem bateia. Pano de prato sem lavoura.
Depuramos sangue, leite e aços.
Lubrificamos engrenagens.
Ossos e couros esculpimos com mui zelosa bondade.
Morremos todos de nossos próprios nomes.
Fomes inomináveis de excessos múltiplos da escassez.
 
Nas lápides veem-se jovens descuidados,
adultos desgostosos, idosos cansados...
Nos demais, mortos de mortos por morte morrida e aqueles
que ultrapassaram a própria vida.
 
Comum o pranto dos órfãos e viúvas da minha terra.
Triste o abandono de nossos velhos em pocilgas pré-tumulares.
 
Glória a deus nas alturas das chamas do inferno,
e restituímos impostos aos homens
de tão grandiosa boa vontade.
 
Mortos, mortos: preces para os mortos!
Um brinde a vida!
Embriaguemo-nos!
Bebamos o morto!
Sorvamos sua ebridez delirante, sua eterna via retirante.
Venham, amigos, à taverna, nos aguarda a aurora.
 
Torto. Tonto. Caído dos dez centímetros de altivez.
Porco. Mal cheiroso, imundo.
Grande o mundo, pequeno o homem.
Grande o homem, pequeno o mundo.
 

Dos ócios
 
O silêncio.
Sábio e divinizado silêncio.
Incomparável plenitude...
Silêncio: soturno inebriante.
Voz dos anjos,auspício dos demônios.
Suplício dos homens.Hospício dos deuses.

Diz-se prece. Revela-se praga.
Eu e eu. Horrores do Eu sou eu.
Quão magistral e magnífica companhia o Eu.
Quão pequeno o eu.
 
Eu e eu. Eu e deus.
Quão tolo deus.
Quão dolo aos teus.
Sublime sabedoria: um diploma e todos
os demais são fátuos fatos de enfados.
 
Uma fada.
Um gnomo.
Um ente.
Um ingente.
 
O manto, a toga,o juízo.
O todo e pleno indigente!
O prejuízo tão lucrativo: orgulho e vaidade
são fundamentais à humildade.
 
Acordamos mais pobres diante da releitura.
Esta percepção de que tudo em nós é pouco e impuro.


Dos vícios
 
Imundo.
O bafo mesclado de macho e ninguém.
Gosto de tabacaria com bordel.
Cheiro de passageiro de trem
depois do expediente nas docas.
Expedimos cartas aos homens de bem.
Nunca saber de boas respostas ou algum vintém!
Dádivas são dívidas, não dúvidas, meu bem...
 
Ah! Andrajos de rei, cantares de profetas.
Embriagados somos mais que reis e profetas.
 
Incautos, pobres incautos: sempre morrem
os tolos antes da sorte...
 
Le blueu! La’mour c’est le blueu!
Oh! Moi femme!! Moi petit femme blueu!
Le blueu! La vache c’est blueu!
 
Uma dose de harmonia em si ilumina o cosmo.
 
Taverneiro! Traga-nos mais vinho!
Mulheres, dispam-se!!
Vamos, taverneiro, apressa-te: pão e vinho!
Leva-nos ao leito, sirva-nos mel e queijo!!
 

Das desesperas
 
A dor não pode ser maior que o prazer;
Nem o medo, maior que o amor!

Oh! Uma gota de amor sublime inunda o oceano.
 
Nos teus seios fartos, mulher, deito meus versos.
Escrevo por tuas coxas os lumes apaixonados
dos poetas de outrora.
Verifico-me teu sem fragmentos.
Antropofágico, devoro por partes teus caprichos.
Vagando por tuas ancas descubro meu astrolábio.

Desnorte. Dessorte.
 
Em teu dorso degusto olores de prazeres inebriantes.
Não direi te amo. Devoro tuas frutas, as como em teu pomar.
 
Colho tuas uvas, maçãs, pêras e romãs.
Sou teu licor, teu esplendor, um lugar.
Manhas e manhãs... Uma brisa fugaz e tênue,
um encantamento. Magia são teus olhos. Mar, teus braços.
Abissal, teu ventre. Em desvario, sou caudaloso rio.
És a fonte e a foz! Teu riso permeia:
despertas estrelas antes da aurora.
 
Degredo: areia movediça, amor.

Todo teu. Sagrado. Segredo.
Sou teu!

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